Esclerose não é falta de memória

Esclerose não é falta de memória

O leigo entende como pessoa esclerosada aquela que vem perdendo a condição de integração social por dificuldades relacionadas à s funções cerebrais, tais como a memória, a crítica e o julgamento. Não existe doença alguma que provoque essa esclerose que, por vezes, também é erroneamente denominada esclerose cerebral. A condição que o idoso pode apresentar é denominada demência. Esse termo tem correlação com várias doenças que afetam o cérebro, reduzindo sua capacidade, com um retrocesso intelectual progressivo. Portanto, a ideia de "pessoa esclerosada" seria melhor descrita como pessoa que está desenvolvendo uma demência. As demências têm várias causas: infecciosas, sifilíticas, tumorais, metabólicas ( hipoglicemia, hipotireoidismo ), vasculares (múltiplas isquemias).

Uma dessas doenças apresentadas por quase metade dos pacientes com demência é a doença de Alzheimer, doença que incide no adulto de 50 a 60 anos e é conhecida como uma das demências pré-senis, na qual observa-se uma perda progressiva de memória e da orientação espacial. Inicialmente, o doente não memoriza fatos recentemente ocorridos e esquece nome das pessoas e, no avançar da doença, após alguns anos, pode não reconhecer os familiares, criando situações altamente constrangedoras. A orientação fica prejudicada e áreas anteriormente habituais tornam-se desconhecidas. A pessoa pode se perder nas ruas do bairro e, no progredir da doença, até mesmo em casa. Portanto, os termos esclerose e pessoa esclerosada devem ser substituídos por "demência" ou "pessoa demenciada".

A denominação esclerose aparece, no âmbito das doenças neurológicas, com o sentido de uma CICATRIZ final do tecido nervoso, do cérebro e da medula espinhal. Nesse sentido, se enquadram a esclerose múltipla e a esclerose lateral amiotrófica. São doenças distintas que incidem em diferentes faixas etárias com evolução diferente e destroem o tecido nervoso de maneira diferente.

A esclerose lateral amiotrófica, ou doença de Charcot, é uma doença que incide no adulto de 50 a 60 anos, levando ao óbito muito rapidamente (normalmente em 3 a 4 anos), e que provoca atrofia progressiva dos músculos dos braços e pernas, e da musculatura da deglutição e respiração. Entretanto, a função intelectual é preservada até o final, representando assim uma situação constrangedora para o paciente, que tem consciência total da sua perda motora e restrição ao leito com dependência completa dos familiares para a alimentação e cuidados de higiene. É uma doença esporádica e a forma familiar é muito rara, tendo sido demonstrada a incidência de hereditariedade em apenas 5% dos casos.

A esclerose múltipla é conhecida também como esclerose em placas. Recebe essa denominação porque, na fase avançada da lesão, se observam cicatrizes no cérebro e na medula. Ambas as denominações dão ideia do que está ocorrendo na intimidade do tecido cerebral: múltiplas placas, difusamente distribuídas, inicialmente se apresentam como um inchaço, seguindo-se a destruição dos envoltórios dos filamentos nervosos (fios de conexão entre os neurônios) e, finalmente, uma cicatriz, com destruição das células que produzem o envoltório (bainha de mielina), e do fio de conexão (axônio) - veja a ilustração acima. O paciente nota a presença dessas inflamações porque, subitamente, perde a função motora, sensitiva ou autônoma relacionada à quela parte do cérebro lesada. Se a lesão evoluir para esclerose, a função estará definitivamente perdida. Caso a inflamação regrida, a função retornará ao normal.

Essa esclerose em placas, ou múltipla, incide em adultos jovens na faixa etária dos 25 a 35 anos de idade, sendo a mulher mais afetada. Não tem caráter familiar, os indivíduos de raça branca são mais acometidos, sendo mais rara em negros e orientais. Os pacientes nos primeiros anos de doença apresentam sintomas e sinais neurológicos transitórios, que ocorrem subitamente e, em questão de dias, desaparecem.

Com a evolução da doença e, na maioria dos pacientes, após uma ou duas décadas, as recidivas dos surtos ou as pioras transitórias de função anteriormente descritas vão deixando sequelas. Essas sequelas são frequentemente de ordem motora, geralmente com fraqueza nos membros inferiores (pernas). No passado, antes do advento das terapias imunomoduladoras, até 95% dos pacientes apresentavam um andar com alguma dificuldade, ou mesmo necessitavam de apoio.

A sequela sensitiva mais grave é aquela relacionada à visão, que também entra no conjunto de sintomas da doença. Existe uma das formas da doença em que a redução da visão e da capacidade motora dos membros inferiores é maior e, portanto, mais grave; esta forma felizmente é rara, não atingindo mais que 7% do total dos pacientes.

Outro sintoma muito desconfortável para o paciente é a perda de controle da micção. No início da doença, ela evolui em surtos com remissão dos sintomas, porém, no decorrer dos anos, o problema pode tornar-se definitivo, exigindo uso de sondas uretrais intermitente ou definitivo.

A função intelectual nestes doentes é muito preservada, e o que pode ocorrer em uma pequena porcentagem deles (não mais de 15%, e após duas a três décadas) é uma perda moderada de memória, que não chega a afetar o trabalho diário do paciente e é facilmente identificada em exames neuropsicológicos.

A boa notícia é que a Medicina evolui constantemente. Segundo o neurologista Prof. Milberto Scaff (Prof. Titular de Neurologia da USP e autor do capítulo do livro Medicina, Mitos e Verdades - Carla Leonel), nos últimos anos ocorreram grandes mudanças na abordagem de diagnósticos e tratamentos das doença desmielinizantes (na qual inclui a esclerose múltipla) que beneficiaram os pacientes neurológico. É caracterizada doença desmielinizante toda doença do sistema nervoso central que danifica a bainha de mielina.

E o que é mielina? Torna-se fácil a compreensão se imaginarmos como funciona o sistema nervoso central. A célula fundamental é o neurônio, que é ativado e ativa outros neurônios através de filamentos; o trabalho de ativação e repouso se processa de modo contínuo através dos circuitos neuronais. Sem a comunicação dos neurônios a função de uma determinada área, e por consequência uma percepção ou uma expressão, ficará prejudicada (movimento, sensações etc).

A doença desmielinizante é considerada a segunda causa de incapacidade funcional em adultos jovens nos últimos anos (perdendo apenas para o traumatismo cranioencefálico). Os pacientes com doenças desmielinizantes vão apresentar sintomas de embaçamento visual, visão dupla, déficit sensitivo, de força e de equilíbrio, tontura ou perda urinária. Houve uma grande mudança na abordagem do diagnóstico e do tratamento de doenças desmielinizantes nos últimos anos.

A primeira delas é a possibilidade do diagnóstico precoce no primeiro episódio de déficit neurológico, por meio de uma boa avaliação neurológica, com exame clínico minucioso, exames laboratoriais e de ressonância magnética. O diagnóstico precoce permite o tratamento adequado e pode evitar novos episódios recorrentes de desmielinização, conhecidos como surtos.

A segunda mudança importante é a possibilidade do diagnóstico diferencial entre diversas doenças desmielinizantes, como esclerose múltipla e neuromielite óptica. A esclerose múltipla é a doença desmielinizante mais comum e chega a atingir 15/100.000 habitantes na cidade de São Paulo, segundo estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo. A neuromielite óptica, também conhecida como doença de Devic, em homenagem ao médico francês que a descreveu, é menos comum. O diagnóstico dessa enfermidade ficou mais fácil graças a possibilidade de confirmação por exames laboratoriais (sangue).

Recentemente, o aumento de medicações capazes de tratar ambas as doenças têm modificado a história natural de doenças desmielinizantes, levando a melhora na qualidade de vida dos pacientes medicados adequadamente, desde o começo do quadro.

O tratamento é baseado em medicações que regulam sistema imunológico para não afetar o sistema nervoso e pode ser feito através de medicações de uso subcutâneo, intramuscular, intravenoso e, recentemente, por via oral. A melhor medicação deve ser decidida caso a caso. De forma associada ao tratamento imunológico devem ser pesquisadas e tratadas deficiências de vitamina, como vitamina D e vitamina B. A deficiência de vitamina D pode estar associada como precipitante de uma doença desmielinizante já latente. Já a deficiência de vitamina B, assim como a deficiência de cobre, pode causar um quadro semelhante aquele de um episódio de doença desmielinizante. De forma geral, o diagnóstico de doença desmielinizante só pode ser feito depois de afastada uma série de doenças sistêmicas.

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Conteúdo do livro MEDICINA - MITOS & VERDADES (Carla Leonel ). Perguntas e Respostas. Capítulo de neurologia. Médico responsável Prof. Dr. Milberto Scaff(Prof. Titular de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/FMUSP).